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Hino do Blog : " ...e todas as vozes da minha cabeça, agora ... juntas. Não pára não - até o chão - elas estão descontroladas..."
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Sunday, September 07, 2008

Fragmentos Rodrigueanos



Nelson Rodrigues é um velhaco, tem a capacidade de ludibriar, de enganar. Aqueles que se aproximam de seus textos correm sérios riscos de errar o caminho, virar tudo de cabeça pra baixo, sair fora da casa e perder completamente o rumo.



Já assisti diversas montagens de seus textos e devo dizer que já vi de tudo. Desde montagens absurdamente ridículas (tipo uma de “Álbum de Família” levada no palco da Terreira da Tribo nos anos 80´s), coisas pretensiosas que perderam o caminho (uma de “A senhora dos afogados” de um grupo de Porto Alegre há muitos anos ) até coisas boas, muito boas e ótimas em montagens de “Toda nudez será castigada”, “Beijo no Asfalto”, “A falecida”, “Dorotéia”, “Meu destino é pecar” (uma adaptação) e outras ( com grupos do Rio e São Paulo).


E especialmente uma realmente sublime, que vi no RJ, chamada “A vida como ela é” que apresentava ipsis litteris alguns contos do bruxo. Inesquecível.


Então não foi sem desconfiança que fui ver uma outra adaptação de alguns contos de “A vida como ela é” , batizada como “Fragmentos Rodrigueanos” apresentada pelo grupo “Cia de atores independentes”, de Gravataí. As adaptações dos textos foram executadas por uma colega do Curso de Especialização em Literatura Brasileira, a Anne. E foi ela quem nos convidou para a noite de estréia – aliás, diga-se de passagem, uma noite tenebrosa pois o frio, a chuva, o engarrafamento e o meu desconhecimento do caminho transformou nossa jornada até o Teatro do Sesc em Gravataí numa verdadeira Odisséia. Mas tudo bem, Nelson vale tudo e chegamos lá.


O saguão do teatro estava lotado. O evento, que pelo que entendi foi patrocinado em grande parte pela prefeitura, parecia ter um caráter mais social do que cultural, pois o local estava praticamente tomado por adolescentes convidados que, na minha impressão elitista, pareciam nunca ter pisado antes nos tapetes sagrados de um teatro.


Tudo bem, as portas da platéia abriram e nos acomodamos. Enquanto a função não começava, olhávamos para grande parte daquele público e imaginávamos se eles teriam condições de “entender” Nelson, se eles “se comportariam”, se teriam “nível” para perceber o texto. Sim, uma coisa bem elitista e pedante da nossa parte, pessoas “cultas e esclarecidas”. Além do mais também pensava comigo mesmo : que tipo de adaptação foi feita? Que liberdades tomaram? Será que vão assassinar o texto do Nelson com uma montagem ridícula, ou através de licenças absurdas, ou através de cacos grotescos, etc, etc ?


Mas vamos ter fé, irmãos! Vamos lá.


Depois de um atraso perfeitamente aceitável e depois do locutor reiterar “desliguem seus celulares” – o que, no meu entender, confirmava minhas suspeitas contra o publico sui-generis - as luzes se apagaram e a peça (me recuso a usar a palavra “espetáculo” para qualquer coisa que vejo num palco ) começou.


Um ator entra e senta-se diante de uma máquina de escrever. Obviamente representando o Nelson no seu ambiente de criação. Ele começa a teclar um texto, outros atores surgem e o primeiro conto aparece.


Se não me engano (estou sem o programa) foi “O casal de três”, uma obra-prima. Aquela história da felicidade conjugal gerada através do amante da esposa. Foi o pontapé no game da noite. E devo dizer que o bate bola começou muito, mas muito bem. O clima, o tom, a ambientação, o texto, os atores começaram a dar o colorido da partida. De um lado um grupo teatral com as mãos cheias de possibilidades e do outro uma platéia a ser conquistada.


E não é que a tal da – para usar uma expressão ridícula – “magia do teatro” começou a fazer efeito? O publico logo começou a reagir no clima da peça. O grotesco dos personagens, o deboche, o sarcasmo, o trágico e o ridículo que se apresentou logo neste primeiro conto – ou seja uma geral no universo do Nelson – encontrou eco na platéia e o aplauso surgiu espontâneo no final. O bate bola estava apenas começando.


O segundo conto –outra obra prima – foi “Uma mulher honesta”. Simplesmente brilhante para dizer o mínimo. Glau Barros encarna a tal honesta no tom patético, tragicômico que a personagem exige. Não a conhecia e me apaixonei. O publico delira e novo gol é marcado.


O terceiro, “Os noivos”, pegou forte na tragédia. Aqui a coisa é mais sinistra, mais down. O cena final chocou os desavisados. Excelente.


As luzes acendem para o intervalo. Eu só sorria, minha cara estava no chão. Tirando alguns problemas de iluminação, tudo estava funcionando : cenário, texto, direção, atores, marcação, expressão corporal, enfim, tudo integrado num conjunto de evidentes qualidades. O que eu estava assistindo até agora era uma montagem de nível absolutamente profissional, séria, dentro de uma perspectiva, de uma visão totalmente coerente com o universo rodrigueano.


A retorno é com “O grande viúvo”. Um cortejo fúnebre surge no meio do publico. A carga de dramaticidade é absurda e o povo dá gargalhadas com dramalhão encenado. Realmente ótimo. Guilherme Ferrêra abusa e faz o viúvo trafegar da tragédia a comédia de forma exemplar.


Em seguida vem “Despeito”, outra maravilha. Aqui o tom é quase que totalmente dramático. Marlise Damine está impecável na pele da esposa enlouquecida para pular a cerca. Outra que chocou o povo.


Para o final ficou um dos meus preferidos : “Delicado”.Juliano Bitencourt arrebenta no papel do garoto suicida. Talvez tenha sido esta a que mais incomodou a galera, não sei. A escolha deste conto para encerrar a encenação é precisa e mostra a sensibilidade e ousadia do diretor.


A cena final mostra a volta do Nelson ao palco com sua máquina de escrever. Neste quadro estava retratado o escritor, seu universo, sua mente, suas histórias, seus fantasmas, seus personagens, seu discurso, enfim sua obra, sua vida. Repetindo (não aguento mais esta palavra) : perfeito.


O problema é que não pude ver muito bem o que estava rolando no palco pois meus olhos estavam marejados (quer expressão mais ridícula?). Sim, admito, chorei. Chorei de emoção, de felicidade por ter podido estar naquele teatro, naquela noite, assistindo aquela peça.O êxito da cultura, da persistência, da coragem, da seriedade e do talento acabaram comigo.


O aplauso em pé não teve nada de demagógico ou falso, foi apenas trilhar o caminho que meu coração e mente tinham aberto.


E o resto do publico acompanhou e devolveu ao palco todos os gols marcados até então. Neste momento o triunfo do empate descaracterizou o jogo e configurou a força da arte.


Enfim, o que posso mais dizer a não ser que foi uma experiência e um aprendizado inesquecíveis? A experiência de ter visto uma das melhores montagens de Nelson já encenadas no Brasil. O aprendizado de saber que a arrogância, o pré-julgamento do intelectualóide de botequim (eu), daquele que se acha (eu, nem tanto) , é pernicioso e redutivo.


Ainda bem que a arte – quando bem feita, é claro – é mais forte e se encarrega de colocar as coisas nos seus devidos lugares.


Todo o grupo está de parabéns (citei alguns atores, mas todos estão ótimos). O diretor Paulo Adriane demonstra traquejo e sabedoria.


E a Anne, é claro, merece um beijo especial. Talentosíssima adaptação, guria !