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Thursday, June 07, 2012

MPB GLS - Parte 3

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MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E OS GUEIS (gays)



Panorama Histórico – Social - Cantos e Representações

- Terceira Parte -

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Trabalho apresentado na conclusão do "CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LITERATURA BRASILEIRA" da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2009.
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A publicação deste trabalho no Blog foi dividida em 5 partes
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Para acessar a Primeira Parte, tecle AQUI.
Para acessar a Segunda Parte, tecle AQUI.
Para acessar a Quarta Parte, tecle AQUI.
Para acessar a Quinta Parte, tecle AQUI
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5 - MPB Guei - Artistas pós 60

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5.1 - O brega e as bichas
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Agnaldo Timoteo
Uma obra fundamental para o entendimento da música brasileira é "Eu não sou cachorro não - música popular cafona e ditadura militar" do jornalista e historiador Paulo César de Araújo. Neste livro, o autor dedica algumas páginas para discutir o trabalho de vários cantores considerados "bregas" que lançaram músicas falando sobre o universo homo na década de 70. Agnaldo Timóteo, Wando, Nelson Ned e Odair José são listados como artistas “bregas” que ousaram abordar o tema durante o período mais terrível de censura às artes.

Entre 1975 e 1977, Agnaldo gravou três discos que acabaram por formar a chamada Trilogia da Noite. De 1975 é A galeria do Amor, uma ode explícita à Galeria Alaska em Copacabana, um notório local de encontros guei (“pegação”) do Rio de Janeiro.

Diz a letra : “ Numa noite de insônia saí / Procurando emoções diferentes / E depois de algum tempo parei / Curioso por certo ambiente / Onde muitos tentavam encontrar / O amor numa troca de olhar / Na galeria do amor é assim / Muita gente a procura de gente / A galeria do amor é assim / Um lugar de emoções diferentes / Onde gente que é gente se entende / Onde pode se amar livremente / Numa noite de insônia saí / E encontrei o lugar que buscava / A galeria do amor me acolheu / Bem melhor do eu mesmo esperava / Hoje eu tenho pra onde fugir / Quando a insônia se apossa de mim / Na galeria do amor é assim / Muita gente a procura de gente A galeria do amor é assim / Um lugar de emoções diferentes / Onde gente que é gente se entende / Onde pode se amar livremente / Onde gente que é gente se entende / Onde pode se amar livremente"

Clique abaixo para ouvir A Galeria do Amor
 

É interessante notar o uso do termo “gente”. Para os não iniciados, “gente” é gente (gênero humano – homem, mulher, criança), porém, nos 70´s era uma gíria fortíssima para identificar os gueis. Por exemplo, quando uma biba queria identificar uma outra – ou delatá-la -, dizia “ele é gente”, referindo-se ao homossexualismo do próximo. Ou então, na aproximação clandestina entre dois homens, um poderia, a título de reconhecimento de área, perguntar : “Você é gente?”. Se o outro fosse o guei, entenderia a intenção da pergunta, se não, acreditaria estar diante de um débil.

No livro, Agnaldo conta de onde surgiu a inspiração para a música:


Eu fiz esta canção por causa de uma noite de paquera. Eu cheguei de viagem, joguei a mala de dinheiro numa gaveta do quarto, desci, peguei meu carro e fui paquerar. E chegando ali eu vi aquele ambiente, as pessoas se olhando, os coroas paquerando os menininhos (...) foi numa noite de paquera. Aquilo que eu retratei na letra foi real, absolutamente real. (ARAUJO, 2002)

Wando
Devido ao sucesso de "Galeria do Amor", Agnaldo gravou mais dois discos que traziam músicas na mesma linha (Perdido na Noite, de 1976 e Eu Pecador ,de 1977) e hoje é de se perguntar se o mundo hétero soubesse da “verdade” por trás destas obras o sucesso teria acontecido. Provavelmente não.

Em 1978 Wando, famoso cantor romântico que era alvo de calcinhas atiradas pelas fãs enlouquecidas nos shows, gravou Emoções que falava sobre a descoberta do amor entre dois adolescentes.


Emoções

Nos fizemos tão meninos livres tão vadios de tanto querer / Nós fizemos poesia pra chorar do riso pra sorrir da dor / Me entregastes teus segredos / Eu falei do medo do meu coração / Assim pisamos noite a dentro / Como dois perdidos cheios de emoção / Nas almofadas tão macias / Nos aconchegamos sufocando a paz / Tudo então se fez ternura que nas nossas juras prometemos ser / Até que a morte nos separe ou até o dia amanhecer / Nós faremos nosso mundo nós seremos tudo que devemos ser / A lua iluminou teu corpo / Moreno, bonito, pra me provocar / No teu rosto um riso lento / Misturado ao pranto vi desabrochar / Te agasalhei nos braços, pele, mãos, espaços, acariciei / Te amei suavemente, e tão docemente, eu me fiz teu rei.

Clique abaixo par ouvir Emoções 


Odair Jose
Odair José, outro ícone brega dos 70´s, o chamado “terror das empregadas”, surgiu com Forma de Sentir onde cantava : “..sei que és entendido (1) e vais entender / que eu entendo e aceito a tua forma de amor...”

Letra :
 
Sei que és entendido e vai entender / Que eu entendo e aceito a tua forma de amor / Que eu entendo e aceito a tua forma de amor... / Ame, assuma e consuma / O teu verdadeiro sentido do sentir / E nem penses que eu vou proibir... / O dobro do verso, o dobro da flor / O dobro do corpo, o dobro do amor /O beijo no beijo, o igual do igual / Trocando, entregando, buscando, chegando / Ao delírio final...Eu vi o teu verdadeiro sentido do sentir / E nem penses que eu vou proibir... / É proibido proibir...

(1) Nota : “entendido”, assim como “gente” era um termo de identificação dos gueis na época.

Clique abaixo par ouvir Forma de Sentir
 
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5.2 - Caetano Veloso e Gilberto Gil – simpatizantes
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Falar sobre a importância de Caetano na MPB é chover no molhado. Gênio, louco, poeta, visionário, egocêntrico, arrogante, ousado, imbecil, ultrapassado, são algumas das alcunhas pelas quais ele é denominado. Com uma carreira artística sólida, ele trafega entre a música, literatura (e cinema), sempre expressando de forma clara e direta suas idéias, suas vivências, seu recado. Polêmico, não foge ao debate, a controvérsia, o que atrai admiradores - mas também inimigos e detratores. “Ame-o ou deixe-o”, parece acompanhá-lo.

Desde o início da sua carreira, sua obra e ações foram marcadas pela “infração”.


Caetano Veloso apareceu como um enfant-terrible da canção brasileira, a partir de 1969. Depois de um leve namoro com as esquerdas ortodoxas, proclamou sua independência da música engajada e rompeu igualmente com a idéia de uma música popular brasileira “pura”, empregando guitarras elétricas e apresentando uma maneira de ver o mundo entre irada e erudita (...). Caetano preferiu falar de um Brasil moderno que, a duras penas, nascia dentre as pernas na eletrônica, da televisão, da mídia em geral. (TREVISAN, 2007, pág. 285)

No que se refere a algum tipo olhar ou leitura guei na arte de Caetano, João registra :


Ainda que repetisse explicitamente que não transava com homens, Caetano provocou furor quando, após voltar de Londres, na década de 1970, subiu aos palcos brasileiros de bustiê e batom nos lábios, requebrando com os trejeitos campy de Carmem Miranda. Numa entrevista, ele se referiu explicitamente ao seu desejo de ser múltiplo, confessando uma forte e consciente identificação feminina, desde pequeno. Ainda mais provocador em seus shows posteriores – verdadeiros festivais de desmunhecação -, Caetano costumava beijar insistentemente a boca de cada um dos seus músicos (...), diante do público que urrava de delírio (TREVISAN, 2007, pág. 286)

Falando de suas canções, algumas são pinçadas sob um olhar guei.

Uma é Menino do Rio onde ele diz : “Menino vadio / Dragão tatuado no braço / Calção corpo aberto no espaço/ (...) quando eu te vejo / Eu desejo o teu desejo / Menino do Rio / Calor que provoca arrepio / Toma esta canção como um beijo”. – Esta canção é uma ode à beleza masculina.

Clique abaixo para ouriv Menino do Rio
 

Outras que podem ser citadas são Ele me deu um beijo na boca e Podres poderes.
Trevisan (2007, pág. 287) comenta as duas sob uma perspectiva guei :


[...] Caetano compôs (...) “Ele me deu um beijo na boca” – em que termina dizendo : “e eu correspondi àquele beijo” (...) ... na contundente “Podres Poderes” , ele utilizava ricos malabarismos de linguagem para vociferar contra o poder burguês, e se dizia poeta afinado com o êxtase dos “índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes”, que fazem o carnaval e zelam pela alegria do mundo.

A interrogação que fica é qual é a idéia por trás da afirmação de que os padres, adolescente e índios, juntamente com as bichas, mulheres e negros “fazem o carnaval” (?!)

Ele me deu um beijo na boca


Ele me deu um beijo na boca e me disse / A vida é oca como a toca / De um bebê sem cabeça / E eu ri a beça / E ele: como uma toca de raposa bêbada / E eu disse: chega da sua conversa / De poça sem fundo / Eu sei que o mundo / É um fluxo sem leito / E e só no oco do seu peito / Que corre um rio / Mas ele concordou que a vida é boa / Embora seja apenas a coroa: / A cara é o vazio / E ele riu e riu e ria / E eu disse: Basta de filosofia / A mim me bastava que o prefeito desse um jeito / Na cidade da Bahia / Esse feito afetaria toda a gente da terra / E nós veríamos nascer uma paz quente / Os filhos da guerra fria / Seria um anticidente / Como uma rima / Desativando a trama daquela profecia / Que o vicente me contou / Segundo a Astronomia / Que em Novembro do ano que inicia / Sete astros se alinharão em escorpião / Como só no dia da bomba de Hiroshima / E ele me olhou / De cima e disse assim pra mim / Delfim, Margareth Tatcher, Menahem Begin / Política é o fim / E a crítica que não toque na poesia / O Time Magazine quer dizer que os Rolling Stones / Já não cabem no mundo do Time Magazine / Mas eu digo (Ele disse) / Que o que já não cabe é o Time Magazine / No mundo dos Rollings Stones Forever Rockin´And Rolling / Por que forjar desprezo pelo vivos / E fomentar desejos reativos / Apaches, Punks, Existencialistas, Hippies, Beatniks / De todos os Tempos Univos / E eu disse sim, mas sim, mas não nem isso / Apenas alguns santos, se tantos, nos seus cantos / E sozinhos / Mas ele me falou: Você tá triste / Porque a tua dama te abandona / E você não resiste, Quando ela surge / Ela vem e instaura o seu cosmético caótico / Você começa olhar com olho gótico / De cristão legítimo / Mas eu sou preto, meu nego / Eu sei que isso não nega e até ativa / O velho ritmo mulato / E o leão ruge / O fato é que há um istmo / Entre meus Deus / E seus Deuses / Eu sou do clã do Djavan / Você é fã do Donato / E não nos interessa a tripe cristã / De Dilan Zimerman / E ele ainda diria mais / Mas a canção tem que acabar / E eu respondi: / O Deus que você sente é o deus dos santos: / A superfície iridescente da bola oca, / Meus deuses são cabeças de bebês sem touca / Era um momento sem medo e sem desejo / Ele me deu um beijo na boca / E eu correspondi àquele beijo

Clique abaixo para ouvir Ele me deu um beijo na boca
 

Podres poderes


Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos / E perdem os verdes / Somos uns boçais... / Queria querer gritar / Setecentas mil vezes / Como são lindos / Como são lindos os burgueses / E os japoneses / Mas tudo é muito mais... / Será que nunca faremos / Senão confirmar / A incompetência da América católica / Que sempre precisará de ridículos tiranos / Será, será, que será? Que será, que será? / Será que esta minha estúpida retórica / Terá que soar / Terá que se ouvir por mais zil anos.../ Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Índios e padres e bichas, Negros e mulheres, e adolescentes / Fazem o carnaval... /  Queria querer cantar afinado com eles / Silenciar em respeito ao seu transe num êxtase / Ser indecente / Mas tudo é muito mau... / Ou então cada paisano e cada capataz / Com sua burrice fará jorrar sangue demais / Nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais / Será que apenas os hermetismos pascoais / E os tons, os mil tons / Seus sons e seus dons geniais / Nos salvam, nos salvarão / Dessas trevas e nada mais.../ Enquanto os homens exercem / Seus podres poderes / Morrer e matar de fome / De raiva e de sede / São tantas vezes gestos naturais... / Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo / Daqueles que velam pela alegria do mundo / Indo e mais fundo / Tins e bens e tais.../ Será que nunca faremos senão confirmar / A incompetência da América católica / Que sempre precisará de ridículos tiranos / Será, será, que será? / Que será, que será? / Será que essa minha estúpida retórica / Terá que soar / Terá que se ouvir / Por mais zil anos... / Ou então cada paisano / E cada capataz / Com sua burrice fará / Jorrar sangue demais / Nos pantanais, nas cidades / Caatingas e nos gerais... /  Será que apenas / Os hermetismos pascoais / E os tons, os mil tons / Seus sons e seus dons geniais / Nos salvam, nos salvarão / Dessas trevas e nada mais... / Enquanto os homens / Exercem seus podres poderes / Morrer e matar de fome / De raiva e de sede / São tantas vezes / Gestos naturais / Eu quero aproximar / O meu cantar vagabundo / Daqueles que velam / Pela alegria do mundo... / Indo mais fundo / Tins e bens e tais!


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Em Três Travestis ele canta belamente a labuta das travas pelas esquinas.



Três Travestis

Três travestis traçam perfis na praça / Lápis e giz / Boca e nariz / Fumaça / Lótus e Liz / Drops de aniz / Cachaça / Péssima atriz/ Chão / Salto e triz / Trapaça / Quem é que diz? / Quem é feliz? / Quem passa? / A codorniz / O chamariz / A caça / Três travestis / Três colibris de raça / Deixam o país e enchem Paris de graça

Clique abaixo para ouvir Três Travestis
 

Em “Multishow - Cê ao Vivo”, surge talvez a melhor música guei do bardo, é a Amor mais que discreto.


Amor mais que discreto.

Talvez haja entre nós o mais total interdito / Mas você é bonito o bastante / Complexo o bastante / Bom o bastante / Pra tornar-se ao menos por um instante / O amante do amante / Que antes de te conhecer / Eu não cheguei a ser / Eu sou um velho / Mas somos dois meninos / Nossos destinos são mutuamente interessantes / Um instante, alguns instantes / O grande espelho / E aí a minha vida ia fazer mais sentido / E a sua talvez mais que a minha, / Talvez bem mais que a minha / Os livros, filmes, filhos / Ganhariam colorido / Se um dia afinal / Eu chegasse a ver que você vinha / E isso é tanto que pinta no meu canto / Mas pode dispensar a fantasia / O sonho em branco e preto / Amor mais que discreto / Que é já uma alegria / Até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo / O seu agora, seu antes, seu depois / Sem ser remotamente / Se quer imaginado / Se quer / Por qualquer de nós dois.

Clique abaixo para ouvir Ilusão a toa & Amor mais que discreto

Em notícia publicada no site “A Capa” Caetano comenta esta canção e aproveita para polemizar (o que era esperado).


[...] Preciso dizer nos shows que a letra é gay. A palavra gay surgiu nos Estados Unidos para explicar alegria. Infelizmente, hoje a palavra chegou com esse ego malévolo", disse Caetano. E para causar ainda mais polêmica, o cantor usou um de seus expedientes favoritos, a ambigüidade: "Não sei se é certo a pessoa ser gay ou não. Só sei que é uma possibilidade". (http://www.acapa.com.br..., 2007)

Numa outra reflexão, violando o erudito através de um olhar maravilhosamente transgressor, Caetano, na canção “Língua”, celebra nosso vernáculo num viés guei : “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões..”. Perfeito.

Gilberto Gil, genial compositor, contemporâneo, amigo, parceiro de Caetano também apresenta em sua obra algumas canções que roçam (ou não) o tema. Uma é Pai e Mãe.


Pai e Mãe.

Eu passei muito tempo aprendendo a beijar outros homens / Como beijo o meu pai (...) Meu pai, como vai? / Diga a ele que não se aborreça comigo / Quando me vir beijar outro homem qualquer / Diga a ele que eu quando beijo um amigo / Estou certo de ser alguém como ele é / Alguém com sua força pra me proteger / Alguém com seu carinho pra me confortar / Alguém com olhos e coração bem abertos / Para me compreender

Clique abaixo para ouvir Pai e Mãe
 

Outra é Super-Homem (a canção)


Super-Homem (A Canção)

Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria / Que o mundo masculino tudo me daria / Do que eu quisesse ter / Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora / É o que me faz viver (...)

Clique abaixo par ouvir Super-Homem (A Canção)
 
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5.3 - Chico Buarque de Hollanda – Luz e Poesia
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Chico Buarque 
Chico Buarque de Hollanda é um iluminado que com sua grandeza artística contribuiu com canções definitivas para o universo musical guei brasileiro.

Hoje é impossível falar no assunto sem lembrar de pelo menos três de suas canções : Bárbara, Geni e o Zeppelin, e Mar e Lua.

Bárbara, foi composta, juntamente com Ruy Guerra, para a peça Calabar – O elogio da traição (1972) e mostra o amor entre duas mulheres (Ana e Bárbara)


Bárbara

Bárbara, Bárbara / Nunca é tarde, nunca é demais / Onde estou, onde estás / Meu amor, vem me buscar / O meu destino é caminhar assim / Desesperada e nua / Sabendo que no fim da noite serei tua / Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva / Acumulando de prazeres teu leito de viúva (...) / Vamos ceder enfim à tentação / Das nossas bocas cruas / E mergulhar no poço escuro de nós duas / Vamos viver agonizando uma paixão vadia / Maravilhosa e transbordante, como uma hemorragia (...)

Clique abaixo para ouvir Bárbara
 

Geni e o Zeppelim, composta para a peça “A ópera do Malandro”, mostra a triste condição de uma travesti que é “aceita” pela comunidade quando esta se vê em perigo de ser bombardeada e Geni pode ser a única pessoa a evitar tal catástrofe: “...Você pode nos salvar / Você vai nos redimir / Você dá pra qualquer um Bendita Geni” e que, após o perigo sumir, é escorraçada tendo que voltar a sua condição de lixo humano: “Joga pedra na Geni / Joga bosta na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni!”

Num exemplo de apropriação indébita , na época do sucesso da canção – segunda metade dos 70´s -o termo Geni foi utilizado para designar negativamente as travestis.

Geni e o Zeppelim
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De tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do porto / Ela já foi namorada / O seu corpo é dos errantes / Dos cegos, dos retirantes / É de quem não tem mais nada / Dá-se assim desde menina / Das lésbicas concumbina / Dos pederastas amázio / É a rainha dos detentos / Das loucas, dos lazarentos / Dos moleques do internato / E também vai amiúde / Com os velhinhos sem saúde / E as viúvas sem porvir / Ela é um poço de bondade / E é por isso que a cidade / Vive sempre a repetir / Joga pedra na Geni / Joga pedra na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni / Um dia surgiu, brilhante / Entre as nuvens, flutuante / Um enorme zepelim / Pairou sobre os edifícios / Abriu dois mil orifícios / Com dois mil canhões assim / A cidade apavorada / Se quedou paralisada / Pronta pra virar geléia / Mas do zepelim gigante / Desceu o seu comandante / Dizendo – Mudei de idéia / – Quando vi nesta cidade / – Tanto horror e iniqüidade / – Resolvi tudo explodir / – Mas posso evitar o drama / – Se aquela formosa dama / – Esta noite me servir / Essa dama era Geni / Mas não pode ser Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni / Mas de fato, logo ela / Tão coitada e tão singela / Cativara o forasteiro / O guerreiro tão vistoso / Tão temido e poderoso / Era dela, prisioneiro / Acontece que a donzela / – e isso era segredo dela / Também tinha seus caprichos / E a deitar com homem tão nobre / Tão cheirando a brilho e a cobre / Preferia amar com os bichos / Ao ouvir tal heresia / A cidade em romaria / Foi beijar a sua mão / O prefeito de joelhos / O bispo de olhos vermelhos / E o banqueiro com um milhão / Vai com ele, vai Geni / Vai com ele, vai Geni / Você pode nos salvar / Você vai nos redimir / Você dá pra qualquer um / Bendita Geni / Foram tantos os pedidos / Tão sinceros, tão sentidos / Que ela dominou seu asco / Nessa noite lancinante / Entregou-se a tal amante / Como quem dá-se ao carrasco / Ele fez tanta sujeira / Lambuzou-se a noite inteira / Até ficar saciado / E nem bem amanhecia / Partiu numa nuvem fria / Com seu zepelim prateado / Num suspiro aliviado / Ela se virou de lado / E tentou até sorrir / Mas logo raiou o dia / E a cidade em cantoria / Não deixou ela dormir / Joga pedra na Geni / Joga bosta na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni
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Clique abaixo para ouvir Geni e o Zeppelim
 

Mar e Lua é uma belíssima poesia que relata o amor suicida entre duas mulheres.


Mar e Lua

Amaram o amor urgente / As bocas salgadas pela maresia / As costas lanhadas pela tempestade / Naquela cidade distante do mar / Amaram o amor serenado / Das noturnas praias / Levantavam as saias / E se enluaravam de felicidade /Naquela cidade que não tem luar / Amavam o amor proibido / Pois hoje é sabido / Todo mundo conta / Que uma andava tonta / Grávida de lua /E outra andava nua / Ávida de mar / E foram ficando marcadas / Ouvindo risadas, sentindo arrepio / Olhando pro rio tão cheio de lua E que continua / Correndo pro mar / E foram correnteza abaixo / Rolando no leito / Engolindo água / Rolando com as algas / Arrastando folhas / Carregando flores / E a se desmanchar / E foram virando peixes / Virando conchas / Virando seixos / Virando areia / Prateada areia / Com lua cheia E à beira-mar

Clique abaixo para ouvir Mar e Lua
 

Bela e emocionante.
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5.4 - Nei Matogrosso – ambigüidade no seu auge.
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Ney Matogrosso
Nei Matogrosso, cantor ícone, está definitivamente ligado a historicidade guei da MPB. Sua aparição, como vocalista da banda “Secos e Molhados” em 1973, provocou um choque estético contundente. 

Com o rosto escondido sob uma pesada máscara de maquiagem, o corpo peludo e seminu - adornado com saias, penas, palha, tapa-sexo, chifres, couro, e outros elementos de mesmo tom -, compunha uma figura indefinível, sui generis que encantou boa parcela da população (desde crianças até os mais velhos), angariou uma multidão de fãs, assustou a mídia e criou desafetos. 

Sua imagem era inclassificável.


Homem? Mulher? Viado? Sua voz feminina – na verdade um raro registro de contratenor, sem qualquer falsete – contrastava com seu corpo másculo e peito cabeludo. A ambigüidade dos Dzi Croquetes chegava nele a um verdadeiro paroxismo (....) Desde Carmem Miranda, talvez, o Brasil não via surgir um ídolo de música popular tão fascinante e exótico. (TREVISAN, 2007, pág.289)

A música de Nei Matogrosso não está, sabiamente, vinculada a uma causa ou bandeira guei – o que certamente a diminuiria – porém algumas de suas gravações jogam com o tema, como por exemplo em O vira (1973), que


(...) brincava com a dança portuguesa do “vira”, lançando um dúbio e escandaloso convite : “Vira , vira, vira homem / Vira, vira lobisomem”. O lobisomem, no caso, referia-se ironicamente a esses anônimos habitantes da grande cidade, que após a meia-noite deixam seu cansativo papel de abóboras para se transformar em atrevidas cinderelas; nas boates gueis, esse sentido ficou evidente : a canção se tornou quase um debochado hino dos homossexuais de então. (TREVISAN, 2007, pág.289)
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O vira
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O gato preto cruzou a estrada / Passou por debaixo da escada. / E lá no fundo azul / na noite da floresta. / A lua iluminou / a dança, a roda, a festa. / Vira, vira, vira / Vira, vira, vira homem, vira, vira / Vira, vira, lobisomen / Vira, vira, vira / Vira, vira, vira homem, vira, vira / Bailam corujas e pirilampos / Entre os sacis e as fadas. / E lá no fundo azul / na noite da floresta. / A lua iluminou / a dança, a roda, a festa.

Clique abaixo para ouvir O Vira
 

Outro marco é a gravação, numa parceria com a banda “João Penca e seus Miquinhos Amestrados”, da versão de Tell me once again (do grupo Light Reflections), que na paródia ficou Telma eu não sou gay e que conta o drama de hetero que, diante da namorada, jura que está sendo caluniado ao ser chamado de guei.

Calunias (Telma eu não sou gay)
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Diz que vai dar, meu bem / Seu coração pra mim / Eu deixei aquela vida de lado / E não sou mais um transviado /  Telma, eu não sou gay/ O que falam de mim são calúnias, meu bem / Eu parei . . . . ./ Não me maltrate assim não posso mais sofrer / Vamos ser um casal moderno / Você de bobs e eu de terno / Eu sou introvertido até no futebol / Isso tudo não faz sentido / E não é meu esse baby doll  / Telma, ô Telminha, não faz assim comigo / Não me puna por essas manchas no meu passado / Já passou, esses rapazes são apenas meus amigos / Agora eu sou somente seu, meu amor
Clique abaixo para ouvir Calunias (Telma eu não sou gay)
 

Em Napoleão a ambigüidade ocorre nas reticências.


Napoleão
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Napoleão com seus cem soldados (3x) / Napoleão viveu com seus cem soldados / Napoleão comeu com seus cem soldados / Napoleão dormiu com seus cem soldados / Napoleão brigou com seus cem soldados / Napoleão venceu com seus cem soldados / Napoleão morreu com seus cem soldados / Napoleão com seus cem soldados / Um morreu de frente o outro morreu de lado / Um morreu deitado e o outro morreu sorridente / Um era soldado o outro era presidente / Ah, um era meu avô o outro era filho meu / Um morreu decapitado e outro morreu soluçando / Um até morreu gritando, cada qual mais diferente / Ai, ai, ai, quedê, ai ai ai quedê quede / Quedê quedê quedê quedê quedê quedê / Mas quem é que sabe o nome desses cem soldados / Napoleão com seus cem soldados / Quem é que sabe o sobrenome desses cem soldados / Napoleão com seus cem soldados / Cem soldados sem velório, cem guerreiros sem história / Napoleão com seus cem soldados / Cem minutos sem memória, sem certo e sem errado / Napoleão com seus cem soldados / E quem sabe me dizer se eram cem soldados / Eu quero ver pra acreditar, eu quero ver, eu quero ver / Napoleão... com seus cem soldados, oh, yeah!
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Clique abaixo para ouvir Napoleao
 
A canção vai listando tipos de relações de Napoleão com seus soldados (viveu, comeu, dormiu, morreu), mas no final o registro é substituído pelo silêncio, que deve ser preenchido pela imaginação do ouvinte – e é óbvio que qualquer coisa inominável pode surgir. Também quando diz “Napoleão ‘morreu’ com seus cem soldados”, a possibilidade de ‘morrer’ ser ‘trepou’ aparece, pois na seqüência vem ‘Um morreu de frente, o outro morreu de lado’ / (...) / Um morreu deitado, outro morreu sorridente...”. Associando esta idéia à expressão “petite mort” (“pequena morte”, termo francês para a sensação de inconsciente pós-orgasmo), a leitura homo-erótica intensifica-se.
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5.5 - Leci Brandão - Samba contra o preconceito
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Leci Brandao
Dentro do seu notório espírito combativo, a sambista Leci Brandão lançou em 1978, de forma explícita, a triste canção Ombro Amigo que retratava brilhantemente a dificuldade da condição gay da época (não que hoje seja muito melhor).

A letra inicia afirmando a condição do amor marginal associado ao medo e ao preconceito , “Você vive se escondendo / Sempre respondendo com certo temor / Eu sei que as pessoas lhe agridem / E até mesmo proíbem sua forma de amor..”

E segue trazendo uma certa esperança, uma utopia, um sonho. Porém, até que isto aconteça, o guei deve se manter na clandestinidade, na mentira. “Num dia , sem tal covardia, você poderá com seu amor sair / Agora ainda não é hora de você, amigo, poder assumir”

E finaliza “E você tem vir pra boate / Pra bater um papo ou desabafar / E quando a saudade lhe bate / Surge um ombro amigo prá você chorar”.

Ou seja, a música mostra que, nos 70´s, o guei só encontrava nos guetos (tipo boate) o espaço acolhedor para poder expressar seus sentimentos. Isto era - e ainda é - uma verdade para muitos gueis.

Já em Essa tal Criatura ela grita o rompimento das amarras, a derrubada da vergonha, o assumir-se..


Leci
Essa tal Criatura

Tire essa bota / Pisa na terra / Rasgue essa roupa / Mostra teu corpo / Limpa esse rosto / Coma poeira / Suja essa cara / Sinta meu gosto / Morda uma fruta madura / Lamba esse dedo melado / Transa na mais linda loucura, deixa a vergonha de lado /Corra no campo / Leva um tombo / Rala o joelho / Mata esta sede / Durma na rede / Sonha com a lua / Grita na praça / Picha as paredes / Ama na maior liberdade... / Abra, escancara esse peito / Clama! Só é linda a verdade, nua sem ser preconceito / Tire essa fruta / Lamba essa terra / Pisa as paredes / Sinta esse tombo / Rala esse rosto / Transa com a lua / Morda essa cara / Linda, tão nua... / Faça da vergonha, loucura... / Abra, escancara a verdade / E ama essa tal criatura que envergonhou a cidade

Recentemente ela regravou estas duas músicas em conjunto (“numa só”), iniciando por Ombro amigo, o que deu um belo efeito de transição da opressão para a libertação.

Ombro amigo
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Você vive se escondendo / Sempre respondendo / Com certo temor / Eu sei que as pessoas lhe agridem / E até mesmo proíbem / Sua forma de amor / E você tem que ir pra boate / Pra bater um papo / Ou desabafar /  E quando a saudade lhe bate /  Surge um ombro amigo / Pra você chorar / Num dia sem tal covardia / Você poderá com seu amor sair / Agora ainda não é hora / De você, amigo, poder assumir / Por isso tem que vir pra boate ...

Clique abaixo para ouvir Ombro Amigo & Essa tal Criatura

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Trabalho apresentado na conclusão do "CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LITERATURA BRASILEIRA" da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2009.
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A publicação deste trabalho no Blog foi dividida em 5 partes
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