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Monday, January 14, 2013

Filme – A indomável sonhadora

Indomavel Sonhadora - Poster
A Indomável Sonhadora (péssimo título em português – o original “Feras do sul selvagem” é perfeito) retrata aquele tipo de gente que vive em condições quase miseráveis,  e  que,  geralmente nos filmes de terror,  aparece no meio do nada para, com suas falas e modos sinistros, darem alguma informação ao povo educado e gozador da cidade, geralmente quanto ao local que eles procuram  (e onde terão o que merecem)  – ou para vender-lhes gasolina que sai de bombas pré-históricas.

Um exemplo notório destes silvícolas atrasados ficou registrado no clássico “Amargo Pesadelo”, especialmente na cena onde um dos “da floresta”  toca banjo com o “homem da cidade”, antes de toda a tragédia começar (veja clipe no fim do post).

É claro que para nós civilizados  fica evidente que estes primitivos não gostam nem um pouco dos “de fora”, não aceitam aproximação nem (falsas) intimidades  e vivem num mundo com   regras e códigos próprios (alguns  avançando perigosamente no politicamente incorreto).

Tudo o que escapa ao seu universo ( muito daquilo que  vimos como conquistas da modernidade) é visto por eles com receio e/ou desconfiança.

Pois no “A  Indomavel..” , surpreendentemente, este povo da periferia da civilização é o protagonista.

A trama é vista  a partir do olhar da pequena Hushpuppy ( Quvenzhané Wallis- excelente), uma garota de  seis anos que  vive com o pai Wink (Dwight Henry - ótimo), e demais nativos locais  em “Bathtub” , uma comunidade em uma ilha da Baia de Lousiana separada do mundo por uma barragem (esta situação reforça  a idéia de um local isolado e meio perdido)

Ali,  onde  parece ser o local do fiofó do Atlas Mundial,  o cotidiano de Hushpuppy  é rico em experiências.

Sua casa (se é que se pode chamar assim tal ambiente), fica no meio do mato. É suja, úmida, bagunçada, remendada  e aberta ao tráfego de todos os animais domésticos ou semi-domésticos (galinhas, porcos, gato, cachorro, insetos, etc).
 
Quando a garota não está na escola,  perambula pelo mato, mantendo um contato bem orgânico e sensorial com a fauna, flora e  elementos  ( -  água, fogo, terra e ar são tratados com forte simbologia durante todo o longa –).

Wink  vive em outro barraco próximo a ela, mas some eventualmente durante alguns dias e deixa a menina se virando sozinha.

Num de seus retornos, a garota percebe as vestes estranhas do pai (um avental de hospital e uma pulseira laranja de paciente), não entende o que é  e o questiona,  só para receber xingamento e agressão de volta.

A mãe não vive ali (ela pode estar morta, ou não), porém  a menina conversa com ela através da imaginação.
Hushpuppy e garotas preparam-se para a "Viagem em busca da mãe"

O pai,  dentro do seu jeito enviesado – e já sabendo estar doente- , se esforça  para ensinar à filha formas de sobrevivência,  como conseguir comida, como usar a força, etc, tudo para torná-la independente.
 
E para isto usa  artifícios duros,  inclusive chamando a garota de “cara”.

Numa cena a menina, ao invés de utilizar uma faca, é ensinada pelo pai a “animalizar” a abertura e ingestão de um caranguejo  diretamente com as mãos, o que ela faz e é então aplaudida.

Na escola, a professora Bathsheba (Gina Montana)  inflama a imaginação da gurizada com histórias sobre selvagens animais pré-históricos chamados Aurochs,  que seriam libertados do gelo quando as calotas polares do Polo-Sul se derretessem, momento no qual a terra seria inundada.

Assim, dentro da proibição de não temer nada da vida e sim estimulada a ser durona, a garota direciona todos seus medos (perda do pai, ausência da mãe, forças da natureza, etc) para os ameaçadores Aurochs.

Quando Bathtube é inundada após uma tempestade (na verdade seria o efeito Katrina) todo o frágil equilíbrio local é destroçado, o que expõe os habitantes a duras realidades.

A natureza de amiga passa a ser uma ameaça ( a inundação do local pelo mar mata a flora e a fauna). Desolados, eles então resolvem explodir a represa. O que executam,  fazendo a agua baixar aos níveis anteriores, porém só para revelar mais destruição e morte.

Por outro lado, para a menina o fato de as águas terem subido é sinal evidente do derretimento das calotas polares e a conseqüente liberação dos Aurochs.

Isto faz com que ela comece  a ter visões dos monstros avançando, supostamente para pegá-la.

Em seguida, através da força das autoridades, ela e todos demais  são recolhidos e levados a um abrigo / hospital

Hushpuppy enfrenta os Aurochs
Lá são “agredidos”  com os bárbaros costumes da civilização que incluem comer em pratos, limpar-se, pentear o cabelo, usar roupas limpas e receber tratamento  médico

Eles então, horrorizados,  se unem para fugir de tal inferno.

No retorno a Bathtube, Hushpuppy , juntamente com outras meninas, embarcam numa “Viagem em busca da mãe”.

Para isto atiram-se desprotegidas às águas e são resgatadas por um barqueiro sem rosto (não é bem assim, na verdade não aparece o rosto dele numa interessante cena  de diálogo),   que as leva a uma espécie de cabaré onde as garotas encontrarão, terão carinho e dançarão com suas (supostas) mães.

Toda esta sequência pode ser entendida como um sonho (ou delírio) de Hushpuppy, pois é absolutamente surreal;   sensação que se estende à volta das garotas ao lar quando então são  atacadas pelos Aurochs.

As outras meninas fogem, mas Hushpuppy fica e enfrenta  os monstros, numa demonstração clara de enfrentamento e superação dos seus medos.

Já nesta condição ela vivencia o que seria seu maior temor e termina o filme com a postura  e o olhar de alguém profundamente transformado e amadurecido.

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Dirigido por Benh Zeitlin, o longa não é de fácil digestão.

Seja pelo tema árduo, pelo forte simbolismo, pelas “cenas cruas”, pelo ritmo lento ou  pela quase “falta de emoção”,  o paladar geral pode não agradar  muitos.

No “A indomável”  é difícil criar empatia por personagens tão embrutecidos e feios,  e o filme não faz muitas concessões neste sentido, o que passa a ser  um mérito.

Então, para “apreciar” (se é que isto seja possível) a obra, é necessário que o espectador se esforce para despir-se de uma série de conceitos e assim se introduzir (ou pelo menos tentar se )  na realidade dos personagens.

Isto provoca repulsa e estranhamento em vários momentos e atração e carinho em outros.

Não digo que “A Indomável..”  seja “bom” ou “ruim” (fica a cargo de cada um), mas definitivamente é uma experiência instigante

Fica na categoria do “vale a pena”,  mas “se prepare”.

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Notas :

1 ) A seleção de elenco pedia garotas entre seis e nove anos de idade para o papel de Hushpuppy. , Quvenzhané Wallis, então com cinco anos,  impressionou os cineastas durante a audição, com sua incrível capacidade de leitura,  seu grito extremo e sua habilidade em arrotar sob comando,  ambos utilizados em cenas do filme

2 )  Dwight Henry (Wink)  não procurava trabalho como ator, conforme explicou para o San Diego Reader:
  • “Antes de eu ser escalado para o papel, eu tinha uma padaria chamada “Henry's Bakery and Deli” bem em frente da agência de elenco onde o Court 13 tinha seu estúdio.  Eles costumava aparecer para fazer seu lanche ou tomar seu café nas manhãs.  Depois de alguns meses acabamos desenvolvendo uma espécie de relacionamento. Eles acabavam deixado flyers na padaria com seus números de telefones ofertando a possibilidade das pessoas aparecerem em seus filmes. “
Durante uma longa hora ele fez seu teste e foi escolhiro.  Entretanto, na época, Henry estava no meio de uma mudança para um prédio maior nas vizinhanças de Nova Orleans, e os cineastas tiveram dificuldade em encontrá-lo. Ele explicou que não poderia abandonar seus negócios, mas eles estava determinados a tê-lo no papel de  Wink.
Gente Diferente - Poster
Henry então concluiu :
  • “ Eu enfrentei o Katrina com a água pelo pescoço, e, portanto, tinha um  entendimento de alma sobre o que o filme tratava.  Eu trouxe ao papel uma paixão que outro ator, que nunca viu uma tempestade de verdade, nem uma enchente ou perdeu tudo,  não poderia ter. Eu tinha dois anos quando o Furacão Betsy invadiu Nova Orleans, e meus pais me colocaram no sótão de casa. Um “forasteiro” não traria paixão igual ao papel, como eu trouxe”.
3 )  Este filme me lembrou em vários momentos o infelizmente esquecido “Gente Diferente” (com as fantásticas Jill Clayburgh e Barbara Hershey) que traz para a cena a mesma categoria de excluídos do “A indomável..”

Só que no filme do Andrey Konchalovskiy temos uma relação explícita entre a família do pântano e a família da cidade, que ocasiona  profundas mudanças de entendimentos e comportamentos de vida em alguns personagens.

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Trailer do "Indomável sonhadora"



Famosa cena do duelo de banjos em "Amargo Pesadelo"




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