Hino do Blog - Clique para ouvir

Hino do Blog : " ...e todas as vozes da minha cabeça, agora ... juntas. Não pára não - até o chão - elas estão descontroladas..."
Clique para ouvir

Friday, December 21, 2018

Sistema Opressor e Narrativas – Entendendo a Rejeição aos Veganos e a outras minorias



O Sistema Opressor e o Equilíbrio de Poder

Uma das formas que o sistema opressor influencia nossas relações é criando entre nós um desequilíbrio de poder quando somos integrantes de diferentes grupos dentro de um sistema.

O sistema define a cada um de nós um papel (personagem), e a um papel é permitido (definido) mais poder do que a outro.

O papel que interpretamos é definido pelo grupo social que pertencemos – branco/preto, homem/mulher, veganos/não-veganos e assim por diante.

Se pertencemos ao grupo dominante, muitas vezes referenciado como “maioria”, temos mais poder do que teríamos se pertencêssemos ao grupo não dominante (ou minoritário).

Porém, é claro que pertencemos a vários grupos, e cada um dos grupos afeta o montante de poder que temos em nossas relações.

Por exemplo, quanto você pertence a um grupo dominante e a um grupo não dominante, e a pessoa com a qual você se relaciona também, o poder se desequilibra um pouco.

 Talvez, por exemplo, você seja um homem (dominante) e também vegano (não-dominante), enquanto a pessoa de sua relação é mulher (não-dominante) e não-vegana (dominante)

Mesmo assim, não significa que o poder estará perfeitamente equilibrado pois alguns papéis nos dão mais poder que outros.

Gênero, por exemplo, tem muito mais influência na quantidade de poder que podemos ter do que a ideologia vegana/não-vegana.

 (Mas) Não é possível nem necessário calcular a quantidade exata de poder que trazemos à nossas relações.

 É suficiente importante entender as bases das dinâmicas de poder nas nossas relações que são oriundas dos papéis que nos foram definidos pelo sistema social.

Talvez a forma mais contundente que o sistema opressor utiliza para causar problemas nas nossas relações seja distorcendo nossas percepções da realidade.

Quanto mais poder temos no sistema, mais poder temos para vermos nossa versão de realidade aceita e vista como verdadeira, mesmo que isto contradiga a realidade objetiva e a verdade da experiência dos outros.  

Nenhum de nós pediu tal poder, e a maioria de nem percebe que o tem.

Mas mesmo assim ele afeta a todos nós, e, ao menos que entendamos como é sua dinâmica, não conseguiremos enfraquecê-lo nas nossas vidas e relações.


Narrativa e Sistema Opressor.

Nossa narrativa é a história que criamos baseadas nas nossas crenças e percepções; é a nossa versão da realidade.

Narrativas podem ser o resultado de nossa experiência pessoal ou da nossa condição social herdada da nossa sociedade.

Por exemplo, se temos uma história pessoal de traição nas nossas relações, podemos ter uma narrativa de que as pessoas são falsas.

Se crescemos numa sociedade heterossexista, nossa narrativa herdada será que a heterossexualidade é normal e natural e que outras sexualidades não anormais e não naturais.

E, se crescemos numa sociedade de consumo de carne, nossa narrativa herdada será que comer animais é natural e normal, e que não comer animais é anormal e não natural .

Nem todas as narrativas são criadas iguais. Algumas narrativas têm mais poder que outras, significando que possuem “mais peso” e que, automaticamente, são vistas como mais verdadeiras – mesmo que não sejam realmente válidas.

Estas narrativas são as narrativas dominantes, ou narrativas sociais dominantes. São as narrativas das pessoas ou dos grupos sociais com mais poder num sistema específico.

Narrativas sociais dominantes são narrativas da sociedade cujos membros de todos os grupos – dominante e não dominantes – são ensinados a aprender e acreditar.

Por exemplo, tanto os heterossexuais quando os não-heterossexuais aprendem a acreditar na narrativa social dominante que a heterossexualidade é natural e que as outras sexualidades são anormais e não naturais;  o que é uma das razões dos altos índices de suicídios entre adolescentes gays e lesbicas.

E os não-veganos crescem aprendendo e acreditando que comer animais é normal e natural (praticamente nunca somos encorajados a pensar de outra forma).

Quando impomos nossa narrativa aos outros, estamos definindo suas realidades e ditando o que é a verdade para eles – e as narrativas sociais dominantes são aquelas impostas a todos.

Todos nós trazemos narrativas sociais dominantes de casa que acabam influenciando nossos relacionamentos pessoais.  
Como resultado, muitos veganos e não-veganos podem cair numa batalha (entre eles) que tem muito menos a ver com a forma pessoal de ser de cada um,   do que com o grande sistema do qual fazem parte.

Por exemplo, a narrativa social dominante que diz que comer carne é necessário à saúde tem muito mais poder do que a narrativa vegana que diz que comer carne não é necessária à saúde – mesmo que os dados não sustentem a narrativa de consumo de carne.

Então, se um não-vegano e um vegano estão discutindo o assunto, a experiencia e narrativa do não-vegano, apoiada pela maioria da sociedade, é automaticamente vista como mais válida do que a experiência e a narrativa do vegano.

Desta forma, debates ferozes podem surgir – não apenas sobre os fatos mas também pelo sentimento dos veganos de que suas opiniões não têm valor e pelo sentimento dos não-veganos surgido daquilo que eles entendem como “radicalização” dos veganos.

===========================================

Texto extraído e traduzido por mim do livro
“Beyond Beliefs: A Guide to Improving Relationships and Communication for Vegans, Vegetarians, and Meat Eaters” da Melanie Joy

Texto original abaixo



Oppressive Systems and Power Imbalances

A key way in which oppressive systems influence our relationships is by creating a power imbalance between us when we belong to different groups within a system.
The system assigns us each a role, and one role comes with more power than the other.
The role we play is determined by the social group we belong to—white/non-white, male/female, veg/non-veg, and so on.
If we belong to the dominant group, sometimes referred to as the “majority,” we have more power than we do if we belong to the non-dominant, or minority, group.
Of course, we belong to many groups, and each of our groups affects the amount of power we have in our relationship.
For example, when you belong to one dominant and one non-dominant group, and so does the person with whom you’re relating, power balances out a bit.
Perhaps, for example, you are a male (dominant) and also a vegan (non-dominant), while your partner is female (non-dominant) and non-vegan (dominant). Still, this doesn’t mean the power will be truly balanced, because some roles give us more power than others.
Gender, for example, has far more influence on how much power we have than does veg/non-veg ideology. It’s neither necessary nor possible to calculate the exact amount of power we bring to our relationships.
It’s simply important to understand the basic power dynamics in relationships that come with the roles assigned to us by social systems.
Perhaps the most important way in which oppressive systems cause problems in our relationships is by distorting our perceptions of reality.
When we have more power in the system, we have more power to have our version of reality accepted and seen as true, even when it contradicts objective truth or the truth of the other’s experience.
None of us asked for this power, and most of us don’t realize we have it.
Nevertheless, it affects all of us, and unless we understand some of these power dynamics, we cannot loosen their grip on our lives and relationships.

Oppressive Systems and Narratives

Our narrative is the story we create based on our beliefs and perceptions; it is our version of reality.
Narratives can be the result of our personal experience or of our social conditioning, inherited from our society.
For example, if we have a personal history of being betrayed in our relationships, we may have a narrative that people cannot be trusted.
If we grow up in a heterosexist society, our inherited narrative will be that heterosexuality is normal and natural and that other sexualities are abnormal and unnatural.
And if we grow up in a meat-eating society, our inherited narrative is that eating animals is normal and natural and that not eating animals is abnormal and unnatural.
Not all narratives are created equal. Some narratives have more power than others, meaning they carry more weight and are automatically seen as more believable—even if they are not actually more valid.
These narratives are dominant narratives, or dominant social narratives, the narratives of the person or social group with more power in a closed system.
Dominant social narratives are society’s narratives, which members of all groups—dominant and non-dominant—grow up learning and believing.
For example, both heterosexuals and non-heterosexuals learn to believe the dominant social narrative that heterosexuality is normal and natural and that other sexualities are abnormal and unnatural, or deviant, which is one reason for the high rates of suicide among gay and lesbian teenagers.
And non-vegans and vegans grow up learning and believing that eating animals is normal and natural; we are virtually never encouraged to think otherwise.
When we impose our narrative on others, we are defining their reality, dictating what is true for them—and dominant social narratives are those that are imposed on everyone. We all bring dominant social narratives home with us, to influence our personal relationships.
As a result, many vegans and non-vegans can become ensnared in a struggle that has far less to do with their personal ways of being than with the broader system of which they are a part.
For example, the dominant social narrative that eating meat is necessary for health has more power than the vegan narrative that eating meat is not necessary for health—even though the data do not support the meat-eating narrative.
So if a non-vegan and a vegan are discussing the issue, the non-vegan’s narrative and experience, supported by the broader society, is automatically seen as more valid than the vegan´s narrative and experience. Heated debates can break out – not only about the facts but also about the vegan feeling like ther opinion isn´t being given equal weight and the non-vegan feeling imp




Thursday, December 20, 2018

Livro - Beyond Beliefs: A Guide to Improving Relationships and Communication for Vegans, Vegetarians, and Meat Eaters


“Para muitos veganos, a decisão de parar de comer animais é uma das escolhas mais poderosas de suas vidas.  E esta decisão quase sempre vem com um preço: o abalo nos relacionamentos. O preço oculto de tornar-se vegano frequentemente é penoso, desmoralizador e desafiador, pois os veganos podem se verem, do nada, tendo que lidar com reações defensivas de familiares e amigos quanto ao seu novo modo de vida. Um modo de vida baseado em valores que os veganos acreditam que seriam compartilhados pelas outras pessoas de sua vida. E os não-veganos também sofrem com estes fenômenos de rompimento provocados pelos veganos. 

===========

“Muitos veganos em relações com não-veganos sofrem da dor da desconexão oriunda do sentimento de que eles não podem compartilhar uma parte fundamental de si mesmos com pessoas que lhes são muito próximas"

============

"Porque a cultura do mainstream (sistema dominante) é não vegana, e de certa forma até anti-vegana, os veganos quase sempre se sentem invisíveis, mal interpretados e compelidos a  esconder suas “partes” não aceitas. Assim algumas das crenças mais profundas e importantes dos veganos – as que mais lhe trazem orgulho e paixão- permanecem não vistas e depreciadas. Quando esta experiencia de não ser visto (e muitas vezes julgado) é repetida em relacionamentos próximos, pode ser algo como jogar sal numa ferida. E, embora os não-veganos sejam largamente apoiados pela cultura, eles também podem sentirem-se, em algum nível,  sem base nas suas relações com os veganos. Os não-veganos podem preferir esconder algumas “de suas partes” por medo de serem julgados ou de causar conflitos”.

 ============

"Felizmente, os abalos nas relações não são fatais e não são irreversíveis. Na verdade, tornar-se vegano é uma oportunidade para reforçar as conexões e melhorar a saúde das relações.  Administrar alguns dos desafios dos relacionamentos “veganos/não-veganos” nos demandam executar o duro, porém recompensador, trabalho de nos tornarmos mais conscientes e mais maduros emocionalmente – trabalho que poderíamos não estar motivados a executar se nossas relações estivessem seguindo um curso “normal”."

===========================================================

Estes são alguns trechos do livro  “Beyond Beliefs: A Guide to Improving Relationships and Communication for Vegans, Vegetarians, and Meat Eaters” (Além das Crenças : Um Guia para melhorar a Relação e a Comunicação para Veganos, Vegetarianos e Carnívoros), da Psicóloga Melanie Joy. 

Em “Beyond..”, Melanye lança-se à árdua tarefa de discutir as dificuldades do relacionamento veganos/não-veganos. Melanye não é burra e sabe que a coisa é punk, porém, como “profissional da cabeça”, também sabe que se as pessoas realmente quiserem e realmente se importarem umas com as outras, as diferenças são administráveis e pontes podem ser construídas. 

O livro é excelente (na verdade me ajudou muito), porém, como a cultura atual celebra cada vez mais o individualismo e rompimento entre “os diferentes”, muita gente vai achar o livro ridículo e uma bela de uma merda (tanto veganos quanto não-veganos).

Wednesday, December 19, 2018

Filme - A Prece

Cristo Salva? 

... pois então...

Vendo o filme “A Prece” podemos chegar à conclusão que sim. 

Ou não seria bem assim? 

Mas, e se Cristo não salva o que será então que aconteceu com o protagonista Thomas (Anthony Bajon, numa atuação premiada com o Urso de Ouro de Melhor Ator, Berlim 2018), um jovem que encontra a cura do vício das drogas ao participar de um grupo de recuperação baseado na fé religiosa e que, cuja experiência, o leva a querer se dedicar definitivamente ao cristianismo?

Se não foi Cristo que o salvou, foi o que então?

Pois bem...

No início, quando chega ao local, Thomas está assustado, agressivo, arredio e fracamente motivado, o que só piora quando toma conhecimento dos mandamentos espartanos a que todos devem se submeter.

Porém tais restrições vêm acompanhadas por sensações que o jovem não está acostumado como apoio, atenção, amizade e acolhimento, o que de certa forma o seduz. 

Mesmo assim, Thomas não entende como as rezas, cantos, trabalhos, meditações e disciplina poderiam lhe ajudar. Isto o leva a quebrar regras, cometer alguns delitos e, digamos assim, repudiar a “doutrina”. 

Porém as coisas não são tão simples e, após vários conflitos (internos e externos) e vivências (emocionais e espirituais), o jovem “ouve o chamado” e parte para ... 

(sem spoiler)

De qualquer forma, algo que o filme deixa evidente – e que é verdadeiro- é que uma rede de apoio baseada no não julgamento, no compartilhamento, no acolhimento, no trabalho e no amor pode ser muito eficiente. 

Porém tais redes só alcançam sucesso se apoiadas na ficção religiosa? 

Fé, amor, acolhimento, superação e renovação são fenômenos exclusivamente religiosos?

Sabiamente “A Prece” não entrega respostas fáceis – o que pode incomodar muita gente - e o final deixa as pessoas tipo “mas e daí?... o que o filme quis dizer?”, e pode frustrar tanto os cristãos quando os ateus .... e isto é um grande mérito.

Muito bom para pensar .

Filme - Cold War


Existe um lugar para nós
Em algum lugar, um lugar para nós.
Paz e quietude e ar limpo
Esperam por nós em algum lugar.

Existe um tempo para nós.
Algum dia, um tempo para nós.
Tempo juntos e sem pressa.
Tempo de aprender, tempo de cuidar.
Algum dia.

Em algum lugar
Encontraremos uma nova forma de viver.
Encontraremos um caminho para o perdão.
Em algum lugar ...

Existe um lugar para nós.
Um tempo e um lugar para nós.
Segure minha mão e estaremos quase lá.
Segure minha mão e te levarei até lá.
De algum modo.
Algum dia.
Algum lugar.

=====================

“Somewhere” (Algum lugar) – do musical West Side Story – imediatamente veio à minha cabeça quando terminei de ver “Cold War” (Guerra Fria - 2018), longa polonês de Pawel Pawlikowski indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro.

Definido como "uma história de amor impossível em tempos impossíveis", Cold War remete imediatamente à “Somewhere” ao narrar a saga de um casal que, apesar de trafegar e viver em várias cidades e países, não encontra seu lugar no mundo.

A saga começa em 1949, numa Polônia recém introduzida ao comunismo Stalinista.

Ali conhecemos Zula (Joana Kulig, esplendorosa), uma jovem camponesa com intenções artísticas que, juntamente com um grande grupo de jovens, candidata-se a uma espécie de escola de arte folclórica onde conhece o professor Wiktor (Tomasz Kot, excelente), um músico e maestro talentoso.

Wiktor imediatamente se apaixona por Zyla, no que é correspondido, e logo os dois estão trabalhando com o grande grupo em apresentações ovacionadas.

É claro que o sucesso chama a atenção das autoridades, que enfiam goela abaixo dos artistas números grandiosos de louvação ao Comunismo e a Stalin.
Esta “aproximação com o poder” é acompanhada de investigações políticas “sutis” que geram um clima de insegurança num meio estimulado à denúncia e à traição.

Porém, quando o grupo se apresenta em Berlim Oriental, Wiktor decide “migrar” para o lado Ocidental e convida Zyla a acompanhá-lo
O que acontece daí pra diante é um carrossel de encontros e desencontros, permeados pela vivência e desfazimento de sonhos de cada um, e repletos de embates (entre eles e com o meio) de modos, personalidades, formações, histórias e culturas, que os levarão cada vez mais a um sentimento de deslocamento e de não pertencimento.

O final, afinal coerente, é belo e triste.

Friday, December 14, 2018

Livro - A Vegetariana (Han Kang)




Yeonghye é uma mulher sul coreana apagada e desprovida de graça, casada com um homem patético que a enxerga como uma serviçal e utilitário.

Sua vida é vazia, cinza e medíocre até o dia em que surpreende ao comunicar que não comerá mais carne.

O motivo? Nada a ver com direito dos animais, saúde, tomada de consciência ou algo do tipo, e sim um sonho que teve que envolvia imagens de pessoas, florestas e sangue.

A explicação de Yeonghye não convence, e isto acaba atraindo sobre ela as reações mais diversas advindas de seu marido e familiares.

Vista como uma transgressora, ela, além de mergulhar sem trégua num processo de alienação e transformação radicais – que revelarão um anseio brutal de transfiguração de corpo e alma-, acaba provocando experiências e mudanças assustadoras nos demais.

O livro de Han Kang não é, como a princípio poderia se pensar, uma obra de militância vegana (se bem que a obra tem um viés que permite algum tipo de identificação com os veganos, especialmente quando se trata de mudar e desafiar o convencional).

“A Vegetariana” é uma fábula intensa que fala sobre as consequências que surgem quando os pesadelos, desejos e dores afloram e “destroem” aquilo que convencionalmente poderia se chamar “razão”.

Muito bom e perturbador

--------------------------

Abaixo, o ótimo trecho de abertura do livro

“Nunca tinha me ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano. Para ser bem franco, não me senti atraído por ela na primeira vez em que a vi. Estatura mediana. O cabelo não era nem comprido nem curto. Tinha uma pele levemente amarelada, as maçãs do rosto um pouco pronunciadas. Vestia-se de forma neutra, como se tivesse algum receio de se destacar. Calçando um par de sapados pretos bastante sem graça, ela se aproximou da mesa em que eu a esperava. Não andava nem rápido nem devagar, sem firmeza, mas também sem muita fragilidade.

Acabei me casando porque ela não tinha nenhum charme especial, e também por não ter notado defeitos muito gritantes. Uma personalidade dessas, sem frescor, brilhantismo ou refinamento, me deixava confortável. Não sentia necessidade de bancar o inteligente para conquista-la e não precisava correr tentando não chegar atrasado aos nossos encontros. Tampouco sentia complexo de inferioridade ao me comparar com os típicos galãs dos catálogos de moda. Ganhei uma barriguinha já na segunda metade dos meus vinte anos. Meu corpo não desenvolvia massa magra nem mesmo com meus repetidos esforços para me exercitar. Até mesmo meu pênis pequeno, que costumava me deixar um tanto apreensivo, parou de me incomodar quando estava com ela.”

Thursday, October 25, 2018

Bolsonaro e o Discurso de Ódio.



Texto de Marcos Natali (professor de teoria literária e literatura comparada na USP) publicado na Folha de São Paulo.


 [RESUMO] Enquanto parte importante da definição de fascismo depende do cumprimento de promessas, uma já foi realizada: a ampliação do espaço de verbalização e prática da violência, argumenta o autor, para quem não é preciso esperar a posse como presidente para definir o candidato do PSL como um fascista.
--------------------------------------------------------------
Na bibliografia sobre o fascismo, nas diversas tentativas de definição do fenômeno, geralmente aparecem referências à importância de aspectos como o elogio à violência, a xenofobia, a expressão do desejo de retorno a um estado anterior, a misoginia e o culto à hipermasculinidade, a vontade de punir e erradicar sexualidades periféricas, a narrativa de vitimização, a oposição à democracia e a louvação do autoritarismo.

Também é comum a menção à necessidade de identificar de maneira inequívoca culpados para o estado de coisas do presente, estimulando a passagem da ansiedade ao ódio, com esses mesmos responsáveis em seguida requeridos como o sacrifício necessário para a recuperação de uma pureza perdida.

A dificuldade de definição, então, não resulta de uma ausência de consenso sobre os elementos básicos a que se refere o termo, embora persistam divergências importantes entre a crítica (por exemplo, sobre a relação entre fascismo e liberalismo).

A dificuldade parece derivar de uma característica do próprio fenômeno que se busca delimitar. Composto por um conjunto de ameaças e promessas, o discurso fascista parece exigir do analista uma avaliação da probabilidade de que sejam cumpridos os juramentos feitos (e não apenas no contexto de uma campanha eleitoral).

Com a ampla circulação de discursos fascistas e falas de ódio na atualidade, orientados por ações políticas de força destrutiva, interpretar seu sentido seria um exercício inglório, pois requereria que se avaliasse quais, afinal, das numerosas ameaças deveriam ser levadas a sério.

O que pensar do brado que propunha fuzilar grupos de adversários políticos? E a garantia de que o ativismo seria exterminado? E o canto da torcida no metrô? E a inscrição de suásticas em portas, muros e peles?

Como escreveu Theodor Adorno em sua “Minima Moralia”, o dilema daquele que se vê diante da necessidade de determinar o alcance efetivo de ameaças é que não há exame razoável e ponderado de proposições que, sendo capazes de produzir movimentos paranoicos, serão necessariamente deslizantes e expansivas, gerando sempre novas presunções causais e culpabilizações.

Não há, sobretudo, como ter confiança de que se sabe quais serão exatamente os limites de uma manifestação paranoica qualquer, ou quais os limiares que não serão ultrapassados. (Como no romance “Graça Infinita”, de David Foster Wallace, a pergunta aqui também é: claro, sou paranoico, mas como saber se estou sendo suficientemente paranoico?)

Entretanto, se é verdade que só poderá haver certeza da existência de uma base real para um receio extremo num momento posterior, não há, ao mesmo tempo, a opção de aguardar para descobrir se as bravatas eram apenas isso, ou se algumas sim e outras não. (Mas quais?)

Mas há outro aspecto que caracteriza o discurso fascista que permite uma avaliação mais segura a respeito do movimento em curso no país.

Entre as possibilidades de significação desse discurso, está o fato de que a promessa principal é justamente a abertura de um espaço para a multiplicação vertiginosa de novas promessas de violência, contra sujeitos diversos, e nesse caso a promessa em si já deve ser entendida como um acontecimento.

No caso da variante contemporânea, seria importante reconhecer, tanto para entender suas características principais como para determinar o tipo de resposta que ela exige, que sua principal promessa já foi cumprida, com o alargamento do espaço disponível na sociedade para a prática e a verbalização crua da violência, neste caso com a repetição de convenções que incluem alusões à morte, à desaparição e à expulsão do território de grupos sociais vulneráveis.

Nesses termos, por mais relevante que seja aquilo que Bolsonaro pode fazer caso seja eleito à Presidência, não é necessário aguardar uma eventual posse para julgar se ele pode ser definido como fascista.

Uma característica adicional desse discurso é que a atração que ele gera se deve precisamente a seu excesso.

Em relação à ditadura, então, o que se ouve agora não é uma defesa ambivalente e envergonhada que busca tergiversar, afirmando, de modo já familiar entre nós, que o regime militar cometeu erros, mas também teve seus acertos, ou que era necessário naquele contexto porque a ameaça era grave. Não, a forma do discurso é a celebração do suplemento excessivo, do elemento mais brutal do regime: a tortura.

Da mesma forma, em vez da argumentação aparentemente razoável ressaltando o suposto caráter brando da ditadura brasileira, se comparada às de países vizinhos, o que se encontra é a asseveração infernal de que o erro da ditadura foi ter sido insuficientemente violenta, isto é, o equívoco foi não ter matado mais.

Um dado da construção do discurso a ser compreendido, aquele que parece ser responsável pela adesão arrebatada, é esse gesto excessivo, o prazer presente nesse excesso, mais do que uma noção convencional de “interesses” que seriam satisfeitos ou não após uma eleição.

Como tem escrito a respeito de Donald Trump o antropólogo William Mazzarella, não é, então, que os eleitores estivessem enganados ao preferi-lo, votando contra os próprios interesses (embora isso também ocorresse). É que seu desejo era pelo gozo do excesso, algo que se revela na disposição para até mesmo botar fogo no circo todo.

(Existem, certamente, algumas semelhanças entre Trump e Bolsonaro; a diferença decisiva, no entanto, como tem sugerido Marcos Nobre, entre outros, é que Trump, quando quer elogiar regimes autoritários, não consegue encontrar exemplos na história de seu país e precisa apontar para a Coreia do Norte e a Rússia. No Brasil, o apelo a voltar 50 anos no tempo encontra na história nacional uma ditadura militar plenamente instaurada.)

É esse o ponto em que o vínculo criado nessas relações pode parecer imune à crítica que aponta um erro no cálculo feito pelos envolvidos a respeito de seus verdadeiros interesses. A oposição ao fascismo precisaria também buscar intervir nessa experiência afetiva, substituindo-a por outra, contrária a ela, uma experiência baseada em outras possibilidades afetivas, algo diferente das comunidades criadas a partir do exercício da crueldade com os mais vulneráveis.

Também está programada na operação paranoica a possibilidade de sempre acusar o outro de exagero; primeiro provoque a raiva da vítima, para então acusá-la de reagir com exagero. E é por isso que a ascensão do humor machista, homofóbico e racista nos últimos tempos parece agora uma antessala para a situação atual.

Exigindo para si não exatamente o direito à expressão, embora assim se apresentasse, mas o direito a um dizer monológico, a um dizer sem resposta, a piada ofensiva também se reservava o direito de, diante de qualquer reação à violência implícita nela, agir explicitamente.

Como também ocorre com a lógica do humor, o discurso fascista busca se blindar com seu caráter excessivo, com sua fachada caricaturesca, até com a figura do bufão, que, convenhamos, certamente não poderia estar falando sério (ou, mesmo que estivesse, não teria a competência necessária para a implementação das políticas destrutivas que prega).

Nesse sentido acaba sendo útil que o líder fascista tenha algo de jocoso, até mesmo algo de risível, aumentando ainda mais o prazer que gera entre seus seguidores, sobretudo se esse mesmo elemento cômico (a cena de um tripé mimetizando uma metralhadora) gerar não o riso, mas a ira de seus opositores.

Como escreveu Lili Loofbourow, as proposições de rebaixamento e humilhação do diferente, configuradas em excesso, permitem provocar dor nos outros e ainda deslegitimar ou zombar de seu sofrimento, em cenário em que a crueldade parece ser um fim, não um meio.

A promessa não é evidentemente a de fornecer uma solução para a crise; é, na verdade, o compromisso com o provimento de bodes expiatórios, esses elementos estranhos e estrangeiros que na estrutura sacrificial estariam impedindo uma restauração do que teria sido perdido.

Essa promessa será infinitamente renovável, pois, dada a permanência da sensação de falta, o dedo que aponta os culpados poderá passar dos índios aos LGBTs aos imigrantes bolivianos aos negros aos ambientalistas às mulheres aos professores... Em contextos de crise, a fixação no obstáculo, e o prazer derivado dessa fixação, também ajuda a evitar que a energia crítica se dirija a esforços que busquem modificar o quadro existente.

Assim, embora indefinições e incertezas possam existir em relação, por exemplo, à extensão do programa de privatizações a ser implementado, ou quanto aos tipos de reforma pelas quais passará a educação, e por mais que a captura do Estado pelo movimento paranoico seja relevante, num aspecto crucial, aquele que não é negociável nesse quadro e o que tem se mantido estável ao longo da campanha, é possível dizer que já sabemos o que pode ocorrer com a eleição.

Inclusive porque essa forma de estimular e disseminar a destruição, que é velhíssima, já foi instaurada por todo o país nas últimas semanas, com a propagação de episódios de violência contra grupos específicos da população.

Foi cumprida a promessa, reorganizando o campo de tal maneira que um homem se sente autorizado a gritar da janela do ônibus, no meio de uma quinta-feira de sol em São Paulo, ameaças de morte às travestis que caminham pela calçada. No mesmo dia, mais tarde, numa feira perto dali, uma freguesa dirá à imigrante haitiana que trabalhava lá que o Bolsonaro estava chegando e ia mandá-la de volta ao Haiti.
Como responder à lógica do fascismo sem se tornar paranoico, sem espelhar a paranoia? Afinal, é preciso habitar o delírio para tentar antecipar seus próximos alvos. A violência que ecoa discursos fascistas que já estavam em circulação, mas legitimada hoje pelo nome de Bolsonaro (enunciado em muitos atos de violência), permite antecipar um fluxo de violência cada vez maior no país nos próximos anos.

Só depois saberemos quanto estávamos certos, mas o custo de subestimar o seu alcance é alto (e se descobrirmos, tarde demais, que a proposta meio tosca de implementar educação a distância no ensino fundamental —que essa, sim— era de verdade?).

A estudante sentada ao lado do homem que se debruçara para fora da janela do ônibus para gritar seus vitupérios fecha o volume da “História da Sexualidade” que vinha lendo, esconde-o discretamente na mochila. O que tinha que começar já começou.

Marcos Natali é professor de teoria literária e literatura comparada na USP.