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Monday, August 14, 2017

“Eu sou negra, ele é gay, e minha irmã é transgênero - somos uma família.”




Eu sou negra, ele é gay, e minha irmã é transgênero - somos uma família.”

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Ela pediu para ser adotada e ganhou um pai com quem compartilha o amor pela dança e uma vida nova

Samara Medeiros escolheu seu pai aos oito anos.

Era o professor de dança do projeto social do outro lado da rua, o coreógrafo e bailarino Rubiélson Medeiros. Depois da morte da mãe, ela e os irmãos passaram por diferentes lares, e ela queria se sentir segura.

Como quando Rubi mostrava que tudo iria dar certo, ensinava os passos de dança, a abraçava e perguntava se seguia indo à escola e se estava tudo bem. De tanto pedir para ser filha, ele um dia aceitou ser seu pai. A seguir, a estudante de 17 anos, moradora de Canoas, conta sua história até formar esta nova família com o pai que ela escolheu e a irmã que ele lhe deu.

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Depoimento de Samara :

Faltam apenas quatro meses para meu aniversário. Trabalho, estudo, tenho uma gata linda chamada Mel, estou começando a fazer meu passaporte, pretendo cursar Psicologia e continuar a dançar, sempre. Pois meu pai é a dança, e foi pela dança que hoje eu estou aqui. Mas nem sempre foi assim...

Minha família biológica era formada pela minha mãe, que faleceu quando eu tinha cinco ou seis anos, não lembro bem. Somos quatro filhos: Janine, minha irmã mais velha com quem tenho muito contato, mãe de uma sobrinha que eu amo, o meu irmão de 16 anos que vive com nossa ex-madrasta, e um irmão que, logo que minha mãe morreu, foi levado por uma vizinha e, segundo informações do Conselho Tutelar, foi adotado.

Nunca mais soubemos dele.

Morei em tudo o que é lugar, passei fome, frio, fiquei fora da escola por muitos anos e teve momentos sobre os quais ainda nem consigo descrever. Enfrentei preconceitos, primeiro por ser pobre, segundo, negra, depois por não ter mãe. Meu pai biológico teve dificuldades, e chegamos a ser recolhidos pelos serviços sociais do Estado. Mesmo assim, meus dois irmãos e eu éramos e somos unidos. A infanda difícil nos uniiL

Nasci em Sapucaia do Sul, mas acabamos morando no bairro Mathias Velho, em Canoas. E, em dezembro de 2007, abriu uma sala de dança em frente ao local onde morávamos, e alguém nos matriculou para a gente se ocupar - corríamos muito na rua (risos).

Naquela sala de dança, conheci o coreógrafo Rubi. Nas primeiras vezes em que me abra­çou, pedi para ele me adotar.

Até hoje não tem explicação: eu o abracei, olhei nos olhos dele e disse "Me adota".

Ele, como nosso professor, adequava as falas e tentava driblar o meu pedido de adoção, explicando que eu tinha família, e que as coisas não são assim. Que aquilo era muito sério. Eu desisti.

Quando os assistentes sociais, ou o Conselho Tutelar batiam na minha casa, ou quando o clima estava tenso e eu não sabia o que iria acontecer conosco, pedia novamente para o Rubi me adotar. A assistente social do projeto de dança orientou-o a não alimentar o assunto, e eles buscaram auxilio no Estado e na escola para apoiar o novo grupo familiar em que eu estava inserida, com figuras de avós bem importantes e que nos ajudaram. Mas eram pessoas da família da namorada do meu pai biológico, que já não conseguia nos cuidar.


Um dia, fomos, mais uma vez, convidados a nos retirar da casa. Partimos para São Leopoldo, onde vivi até os 11 anos, ficando fora da escola e passando muito frio - mas com bichos, natureza e espaço para brincar. Depois, esta família se desorganizou, e fomos divididos mais uma vez. Voltei para Canoas, e tudo voltou a ficar bem difícil. Lembrei do Rubi e fui atrás dele. Soube que ele havia adotado uma adolescente e fiquei muuuuito bra- ba, já que um dia havia pedido para ele me adotar e não deu.

Então, prometi: eu seria filha dele! Eu tinha 12 anos.

Ligamos para o Rubi a cobrar e agendamos uma conversa. Ele como sempre alegre e com aquele abraço carinhoso nos levou para conhecermos o McDonald's, um sonho de infanda. Falou que, como amigo, iria nos auxiliar.

Conheci, então, a América, hoje minha irmã.

Logo que ela me viu disse: "Meu pai fala muito em ti! Que você era a menina que ele sempre quis auxiliar como pai e que você já havia pedido". No inicio, eu não me dava bem com América, pois ela já era cuidada pelo Rubi.

Claro que a América precisava muito. Quando descobri sua história de vida, percebi o quanto.
Naquela época, o Rubi estava viajando, morando em dois Estados (entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul).

Eu estava desconfortável, com medo de voltar para o Conselho Tutelar.

Ele sempre perguntava como eu estava, se alguém estava me maltratando, e me matriculou na escola.

Com ele, aprendi a dançar e a dar aulas. Ele sempre acredita que no final as coisas vão dar certo, e, de uma certa forma, sempre dão.

Um dia, depois da apresentação em um evento beneficente, pedi para talar com Rubi no camarim.

Era tudo ou nada.

Disse a ele que não tinha mais onde morar, que as pessoas onde eu vivia estavam reclamando de mim e que todas as possibilidades estavam esgotadas

. Pela terceira vez, pedi que me adotasse. Rubi havia recém chegado de uma tumê de dança pelos Estados Unidos, estava feliz.

E ele é um homem bom.

Se realmente tu não tens onde ficar e for de direito a minha responsabilidade por ti, digo 'sim!"

No outro dia, ele foi ao Conselho Tutelar e ficou responsável por mim. De lá para cá, minha vida mudou.

A primeira coisa foi descobrir que meu futuro pai não era rico(risos).

Ele aparecia na TV, no jornal, fazia shows e andava bem vestido, mas não havia mordomos, carrões, empregada, nada.


Era tudo pequeno, simples, ele faz tudo, e a gente também entra no ritmo.

Ali encontrei cuidado, infra estrutura e amor.

E regras: ele pegava e pega pesado na rotina escolar e, quando fiz 14 anos, preparou a mim e a América para fazer estágio, buscar bolsas de estudos e fazer trabalho voluntário.

Tem muita conversa, dança, regras e regras, mas também uma coisa que transborda na minha relação com meu pai: amor e compreensão.

Eu sou negra, ele é gay, e minha irmã é transgênero - somos uma família.

Ter guarda, tutela e ser adotado são processos lentos, que às vezes nos desestabilizam.

Assumir a paternidade de adolescentes ainda é muito raro.

Mas, mesmo assim, meu pai diz que não fomos questionados por não ser uma família tradicional.
Hoje, vivemos uma fase muito legal: estudar e trabalhar é o lema da casa.

E ser feliz, aceitar que dói menos e levar a vida leve.

Estou no meu segundo estágio pelo Centro de Integração Escola e Empresa, sou aprendiz no Colégio La Salle de Canoas, estou organizando meu passaporte para dançar com meu pai fora do Brasil, e estamos gravando um filme que aborda exatamente as questões entre eu, minha irmã e meu pai.

Somos uma família formada pela dança.

0 Rubi sempre quis ser pai, e eu sempre soube que seria filha dele. Sabia que não poderia deixá-lo escapar.

E assim hoje estamos eu, América e Rubi, meu pai.

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Matéria publicada no Caderno Donna ZH 12/08/2017

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